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Pausa na auto-análise: esclarecendo disciplina e liberdade

"...Disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem..."

Para não perder o costume, comecei de novo com Legião Urbana ("Há Tempos", primeira faixa do álbum "As Quatro Estações"). No último post, começei a falar sobre as "liberdades" que me afligem, mas acho que antes de concluir esta série de posts, preciso estabelecer um pouco melhor minha visão dos diferentes conceitos de liberdade. Então, meu foco maior é naquela frase inicial: "disciplina é liberdade".

Como eu disse antes, poetas podem escrever qualquer coisa sem deixar claro o que querem dizer (e muitas vezes sem dizer nada realmente). E frases pequenas como esta são perfeitas para fazer pensadores e filósofos de refúgios virtuais e mesa de bar ficarem discutindo por horas sobre "o que ele queria dizer", ou "como pode associar com as coisas que estão acontecendo".

Não acho que meu pai, nos anos que serviu o Exército, fosse concordar que havia muita liberdade naquela disciplina hierárquica tão forte. Nem tampouco acho que algum pré-adolescente disciplinado a ir dormir às 11 da noite se sinta livre quando quer ficar jogando algum WOW da vida até tarde com os amigos virtuais (para aqueles que, como eu, andam desatualizados no mundo dos jogos virtuais, WOW é a abreviatura de World of Warcraft, um MMORPG bastante popular na primeira década deste século - e para aqueles que também não sabem o que é um MMORPG, provavelmente esta informação não vai fazer muita diferença).

Vamos, então, um pouquinho mais fundo. No dicionário (minha referência é o Priberam, dicionário online de português), dentre várias definições de disciplina, podemos mencionar as seguintes: Conjunto de leis ou ordens que regem certas coletividades, boa ordem e respeito, submissão, obediência, instrução e educação, autoridade ou respeito a autoridade. Ou seja, podemos simplificar a definição de disciplina como um conjunto de regras e o comportamento de seguir estas regras.

Por outro lado, liberdade é algo ainda mais difícil de definir. Muita gente tenta moldar o termo liberdade validar seus argumentos, justificando a disseminação de calúnias pela liberdade de expressão, ou terrorismo pela liberdade de crenças (isto sem falar de algumas definições questionáveis dos defensores do 'free market', mas vamos manter este espaço alheio a discussões políticas). Então, eu vou talvez usar do mesmo artifício, para cunhar uma definição de liberdade que me seja útil mais adiante.

Definição: Liberdade é uma entidade ou comportamento associada a um agente e que se manifesta de duas maneiras interconectadas: interna (local) ou externa (ambiental). Por liberdade ambiental, considero a possibilidade de um agente atuar de acordo com suas intenções dentro de um ambiente. Já a liberdade interna consiste na capacidade do agente em deliberar sobre seus próprios estados mentais.

Perdõem o jargão de "sistemas multi-agentes" (Moser, se tu estiveres lendo isto, imagino que terás sérias ressalvas com relação as minhas definições). Só estou tentando deixar bem claro minhas idéias de como a liberdade funciona em diferentes níveis. Por um lado, existe esta liberdade que tantos defendem veementemente, de poder fazer aquilo que se intenciona - nunca se esquecendo que, mesmo que se sejamos livre para tomar uma decisão, somos também responsáveis pelos efeitos desta nossa decisão no ambiente que nos rodeia.

Vamos tomar um exemplo bastante simplório. Imagine acordar um dia com vontade de comer Mozzarella de Búfala (talvez acompanhado de ameixas pretas). Quando abres a geladeira, percebe que o teu estoque de queijo acabou, mas existe uma porção (suficiente para saciar tua vontade) que pertence à pessoa com quem divides a geladeira. Neste caso, defino por liberdade (ambiental) esta possibilidade de comer o queijo - mesmo que saibas que vais ter que arcar com as consequências, como comprar um queijo novo ou prejudicar uma outra pessoa.

Tenho a impressão que já dá para visualizar agora o meu conceito de "liberdade interna" e a relação entre liberdade e disciplina. A situação de pegar o queijo alheio, não passa de uma resposta a um estímulo interno, um desejo mais forte. Porém, existe sempre a opção de resistir a este desejo - mais especificamente a liberdade de escolher quais os desejos que podem se manifestar nas tuas ações, em vez de meramente ser um escravo de teus impulsos mais fortes.

Matthieu Ricard, o autor do livro atualmente em minha mesa de cabeceira, define que ser livre é ser mestre de nós mesmos. Porém, para conseguir certos níveis deste tipo de auto-controle, acredito que não basta meramente querer - temos que desenvolver um comportamento que seja condizente com esta meta. Suponha alguém querendo perder peso: não basta querer comer menos para no dia segunte ter uma dieta adequada - a pessoa tem que definir um conjunto de ações, de regras a serem incorporadas no seu dia-a-dia e ter um comportamento adequado com suas metas de alimentação e peso, para que paulatinamente possa se tornar capaz de escolher se deve ou não seguir eventuais desejos de comer uma picanha assada (mal passada, com uma capa de 1cm de gordura que escorre lentamente, deixando a carne ainda mais suculenta). Este comportamento de seguir um conjunto de regras é exatamente a definição acima de disciplina.

Para encerrar, acho que uma questão pode ter ficado no ar para alguns leitores mais atentos: Num post anterior eu defini que a razão deve ser escrava das paixões, e neste post eu estou contemplando uma idéia de liberdade que é exatamente a capacidade de não ser escravo de seus desejos e impulsos - não seriam estas idéias contraditórias??? Na minha opinião, não existe uma contradição, mas sim uma complementaridade - uma hierarquia nos nossos níveis de consciência. A chamada "razão", como eu tinha dito antes, é estabelecida como uma consequência de nossas paixões, de nossas crenças, desejos e intenções (putz, BDI de novo). Porém, a nossa existência como ser humano diz respeito exatamente à maneira que nos colocamos com relação a estas paixões - se somos meramente escravos delas, ou se nos colocamos como agentes de nossa própria felicidade e destino, buscando maior liberdade para selecionar quais paixões devem ser cultivadas e quais devem ser evitadas. Se isto faz sentido, ou se alguém realmente é capaz disso, não tenho certeza - mas creio que este processo de busca, por si só, já é fascinante demais para se deixar perder entre as curvas e obstáculos de nosso caminho.

No próximo post, volto a trazer para vocês uma história cheia de ação, violência, intrigas e sexo... ou não, talvez eu siga só remoendo minhas filosofias e análises para incomodar vocês, e conseguir talvez colocar em palavras um pouquinho mais de quem eu sou. Abraços a todos

"...Lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa"

6 comentários:

Unknown disse...

Liberdade com responsabilidade,é a simplicidade de teu velho Pai.O ser humano deveria (todos)entender que nossa liberdade termina onde começa a de nosso (amigo,inimigo,adversário,companheiro etc...)e nossa responsábilidade (por nossos atos)deverá estar sempre viva dentro de nós. Se comemos o queijo que não nos pertencia,devemos repo-lo,a qualquer custo,tenha o nome que tiver este tipo de responsabilidade

tio zé disse...

RETRATAÇÃO

Referente ao post (disciplina e liberdade)fiz um comentário erroneo,pois,interpretei "DISCIPLINA e LIBERDADE) como "LIBERDADE e RESPONSABILIDADE). desculpem...

tio zé disse...

Eu sempre comentei contigo (que a mim não importa se consegues terminar o "Doutorado"ou não)o importante é que tu és importante.(Desculpem a redundância).Por isto tenho certeza que vais superar estes momentos de insatisfação contigo mesmo,que nós comunmente chamamos de nostalgia,saudades,etc.Tenho certeza que para teus amigos,e colegas,como para mim,já mostraste do que tu és capaz.Como diz o poema(se)Ès um HOMEM

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Sem aprofundar demais pelo pouco tempo disponível e uma infinidade de afazeres, mas cada vez mais concordo com o sentido da frase que imagino que RRusso queria trazer. Tenho tido teoricamente, muito tempo disponivel (independente da qtd de tarefas a executar)mas até que ponto minha "falsa" (?!) liberdade tem sido associada à disciplina, p/ que esse tempo todo disponível seja de fato aproveitado ???!!! enfim, conjecturas que talvez precisariam ser pensadas e repensadas

Adriel disse...

http://rodrigoconstantino.blogspot.com/2010/08/liberdade-segundo-mises.html

"Mises define a liberdade como o estado em que cada indivíduo é livre para escolher, sem a restrição da violência do governo além da margem em que a lei da praxeologia restringiria de qualquer maneira. Os indivíduos são livres quando podem praticar suas trocas voluntárias, contando com o aparato do governo somente para impedir a agressão alheia."

"A liberdade “natural” de um Robinson Crusoé isolado na ilha não fazia muito sentido para Mises, pois tal “liberdade” duraria apenas até ele encontrar um concorrente mais forte em seu caminho. Na fria biologia, o mais forte está com a razão. Neste sentido, Mises pensava que o homem primitivo não nasceu livre. Sua liberdade teve que ser conquistada.

O homem é livre, segundo Mises, quando ele pode escolher os fins e os meios que serão usados para atingir tais fins. Entretanto, para preservar esta própria liberdade, os indivíduos devem estar protegidos contra a tirania dos mais fortes ou espertos."